[Diário de bordo] Novo país, nova vida, nova casa: China!

Estamos em Pequim desde meados da segunda quinzena de julho. Estivemos aqui em fevereiro último para dar uma olhada ao redor e descobrir se iríamos gostar de viver aqui e batemos o martelo. De lá pra cá aguardamos as confirmações todas, preparamos a mudança. Nos desfizemos de coisas que não queríamos mais. Passamos inúmeros estresses... Tudo aconteceu muito rápido, só que não. 

O fato é que estamos aqui há 10 meses. Procurar apartamento por aqui revelou-se tão complicado quanto em outros lugares, porque há muitas opções ruins. Até encontrar o lugar, onde a relação planta do apartamento + prédio + localização do imóvel atendessem às nossas expectativas, levou um tempo. E no fim o escolhido foi um apartamento num dos primeiros prédios onde Bruno esteve assim que chegamos. Quando eu vim ver, haviam outras unidades disponíveis e os apartamentos mais altos têm uma vista incrível, com a qual eu queria casar. Até encontrarmos um apartamento que estaria vago na data em que nossa mudança chegaria levou um tempo. Mas tudo se ajeitou. Ufa!?

A vista do skyline de Pequim que temos da janela da sala.

A vista do skyline de Pequim que temos da janela da sala.

Mais ou menos.


Quando viemos em fevereiro, o objetivo fundamental era avaliar as condições de poluição em que a cidade se encontrava. Nossa viagem pela Índia, apesar de incrível, me deu um certo desespero de viver num lugar extremamente poluído. Apesar das notícias de que a qualidade do ar em Pequim vinha melhorando consideravelmente, dados os esforços do governo chinês neste sentido, eu queria ver com meus próprios olhos. E foi tudo tão tranquilo que nem titubeamos. Seria bom pra mim, dada a riqueza da cozinha chinesa, e seria bom para o Bruno porque o escritório da China é um dos maiores e mais importantes para o trabalho dele. Só que, quando chegamos aqui - em pleno verão - o calor era tanto e a poluição estava tão forte que eu experimentei um certo pânico nos primeiros dias. Uma das piores combinações pra mim, capaz de me fazer não querer sair de casa por nada deste mundo. Então meus primeiros 2 meses na cidade foram meio caóticos.

Eu experimentei, também, um certo luto pela mudança de país. Ele sempre existe. Mudar de país é como se você morresse junto com a mudança. Daí no novo lugar você precisa renascer, tentar se conectar com o novo espaço, construir uma nova vida do início. Além disso, a minha capacidade de comunicação diminuiu drasticamente. Enquanto no Sri Lanka eu conseguia me virar bem em inglês ao ponto de não ter precisado aprender a língua local, em Pequim eu praticamente me comunicava por mímica. Claro que com o tempo e a falta de domínio das línguas locais (em Miami eu levei tempo pra soltar a língua e compreender o que as pessoas falavam comigo em inglês. Quando eu finalmente comecei a me comunicar, as pessoas teimavam em me responder em espanhol), eu desenvolvi uma capacidade de compreensão da linguagem corporal e olhares que me fazem perceber mais rapidamente o que estão tentando me dizer em outro idioma. Pois bem, o luto foi mais forte do que eu imaginava, por estes motivos todos, mais os acontecimentos do Brasil que me deixaram à beira de um ataque de nervos e uma vontade incrível de sumir do mundo. Deprimi. O outono chegou e com ele o pólen suspenso no ar me levou a nocaute. Fui parar no hospital. Levei mais de um mês pra conseguir me recuperar. Mal conseguia ficar de pé. Passou.

Aos poucos eu fui descobrindo lugares interessantes, me conectando com novas pessoas e descobrindo escolas de cozinha e restaurantes que oferecem o que há de melhor da variada cozinha chinesa que eu não conhecia. Comecei a estudar o Mandarim. Fui aprendendo a me localizar na cidade. Encontrei fornecedores de pão sourdough. Perto do meu prédio tem uma feirinha de hortaliças e frutas bem legal. A vida foi se desenrolando e e fui começando a sentir que estava de volta. Quando estava me sentindo mais fortalecida, decidimos adotar um outro gatinho para fazer companhia ao Onofre. Ele não gostava de ficar sozinho e isso me deixava com pena. Depois de muito procurar encontramos o Batatinha. E a vida tomou forma novamente.

Aqui Onofre ainda reina absoluto na casa, enquanto Batatinha vai pouco a pouco conquistando seu espaço.

Aqui Onofre ainda reina absoluto na casa, enquanto Batatinha vai pouco a pouco conquistando seu espaço.

Pra finalizar, deletei minha conta no Facebook. Deletei meu app do twitter do meu celular. Só mantive o Instagram.

Depois de tudo isso eu me sinto energizada o suficiente para voltar ao blog com força total. Quero muito tornar este espaço o meu objeto de trabalho. E por meio dele desenvolver projetos que ainda estão na gaveta. Ele será minha porta de contato com este mundo virtual que tanto nos suga, mas o objetivo é manter-me ativa na cozinha. Espero que seja produtivo pra mim e interessante pra quem quiser vir ler.

 

[Diário de bordo] Dizendo adeus ao Sri Lanka, dois anos e meio depois.

Serendipity é uma palavra que foi cunhada num romance de Horace Walpole: "Os três príncipes de Serendip", cuja história se passa no antigo Ceilão (um outro nome antigo do Sri Lanka é Serendib, de onde vem a palavra criada pelo autor) e onde os protagonistas estavam sempre encontrando algo incrível, que não estavam procurando originalmente. A palavra significa isso mesmo: feliz descoberta ao acaso. 

A vida nos reserva experiências que contribuem para o nosso crescimento. Cada momento, novidade, queda, decepção, alegria, ganhos ou perdas, nos permitem construir constantemente este projeto que só estará pronto, se estiver, no momento de nossa morte. A idéia de que a felicidade é um fim em si mesma, a grande busca da vida de todos nós, torna-se ultrapassada a partir do momento em que você entende: estar presente é o grande lance de toda esta busca. Como escreveu Guimarães Rosa, "A felicidade se acha é em horinhas de descuido.". Naquele pequeno espaço de tempo em que você está presente. Sem fazer planos, como disse John Lennon. Somente aceitando o que vem. 

Deixa a vida me levar

A nossa mudança para o Sri Lanka aconteceu numa horinha de descuido. Nasceu durante uma conversa minha com o Bruno, em um restaurante de comida inspirada no Sudeste Asiático. Durante um brunch de domingo, ainda em Miami. Naquela época a inclinação dele era de que nossa próxima cidade fosse na América do Sul. Eu falei, pensando alto, que apesar de adorar a idéia de conhecer mais os nossos países hermanos, acreditava que nós devíamos aproveitar a oportunidade de conhecer aquele mundo diferente que deveria ser a Ásia. Com suas comidas deliciosas e culturas incríveis, seria um prato cheio para nós. Desbravaríamos um pouco mais deste mundão que fica cada vez menor. Eu, pela comida. Ele, fotografando. "Imagina a gente passeando pelo rio Mekong!". Os olhos brilharam. 

Rota alterada para a Ásia, o Sri Lanka nos caiu no colo. A idéia original era tentar ir para a Índia, Vietnã, Tailândia, Japão ou mesmo a China, mas acabou que nos vimos embarcados nesta aventura de nome engraçado, cuja localização eu tive de ir ver no mapa. Seria a minha primeira vez morando numa ilha. A proximidade com a Índia contribuiu para a idéia de que o Sri Lanka seria uma miniatura daquele país. O tempo diria que esta era uma idéia completamente equivocada. Para o bem e para o mal.

Túnel do tempo

Lembro que uma das primeiras sensações que tive foi a de volta no tempo. Talvez o cheiro de naftalina por todos os lados contribuísse um pouco para essa impressão. Lá encontrei alguns objetos e referências que fizeram parte da minha infância / adolescência, entre os anos 80 e 90, e que são muito comuns. Aos poucos entendi que o excesso de humidade, os insetos que surgem por conta das características da capital e os longos tecidos dos Sarees das mulheres eram os responsáveis pelo cheiro que se tornou símbolo da ilha pra mim, muito embora a naftalina tenha um cheiro do qual eu nunca gostei. 

Falando nas mulheres locais, elas são um capítulo à parte. Se tem uma coisa da qual eu nunca me cansei foi de admirar as mulheres srilanquesas e seus cabelos fartos, pesados, longos, negros e lustrosos, passando em seus sarees coloridos por todos os lugares. Quanta inveja eu senti dos cabelos e da cor da pele, naturalmente bronzeada. Conheci uma mulher que tinha a pele de brilho tão fresco que absorvia a luz de maneira ímpar. Como pele de criança. Tive dificuldades em parar de olhar. Belíssima! As crianças srilaquesas também, com seus enormes e expressivos olhos de jabuticaba, boca pequena e queixos miúdos, os cortes e penteados mais fofos nos cabelos. As em idade escolar dão gosto de ver, voltando pra casa no uniforme branco com gravatinhas coloridas. As meninas usando tranças... 

A região central de Colombo tem um lago artificial que atrai muitos pássaros, especialmente pelicanos. A imagem deles voando bem baixo, parecendo pterodáctilos passando por nossas cabeças, junto a morcegos gigantes em revoada logo pela manhã ou no fim da tarde - além dos corvos barulhentos espalhados por todos os espaços - trouxe sensação de alegria pela fauna diversa encontrada na cidade. Tornou-se comum ver corvos levando as coisas mais inusitadas nos bicos durante o vôo: desde um sanduíche roubado de uma criança, passando por cabides de arame e fios para fazer ninho, chegando à ratos mortos e parcialmente eviscerados que as turmas de gralhas comiam. Um espetáculo de encher os olhos e que ajudou a forjar nossa experiência neste país que esteve em guerra civil por 30 anos, até 2009. 

Expectativa X Realidade

Aos poucos fui aprendendo um pouco mais sobre Colombo e a vida que eu levaria na cidade. Eu tinha pensado que talvez a capital do Sri Lanka se assemelhasse a uma cidade do interior brasileiro. Em alguns casos, acertei em cheio. Noutros, nada podia ser tão diferente. Pensei que as estradas talvez não fossem asfaltadas e por causa deste meu pré-conceito decidimos comprar um Jipe pra viajar pelo país quando possível. Mas a qualidade do asfalto das estradas é excelente, quase todas parecendo um tapete e sem buraco algum. As rodovias que ligam as cidades são recheadas de curvas e surpresas como mão dupla em pista simples. Uma distância de 100 km só pode ser vencida depois de quase 3 horas de viagem. Isso fez com que a escolha do carro tenha sido acertada, principalmente porque pudemos fazer Safáris nos parques nacionais usando nosso próprio carro. 

As casas srilanquesas são muito grandes e escuras. Muita madeira e quinas. Aberturas tipo cobogó nas paredes, cobertas com acrílico pra evitar os mosquitos transmissores da dengue. Corrimão cromado, escadas, varandas e bancos de cimento... Famílias inteiras vivem sob o mesmo teto. Isso tudo fez com que a nossa busca por uma casa pequena durasse muito mais do que o normal. No fim, alugamos uma casa de 4 quartos da qual eu nunca gostei, muito embora ela fosse uma das mais claras e sem quinas, com menos pavimentos e coisas estranhas que achamos. Minha energia não bateu com a da casa e eu nunca me senti bem dentro dela. A localização era ótima, apesar de ficar meio escondida numa pequena rua que abrigava uma espécie de vila de casas, quase todas iguais, onde a maioria dos moradores eram locais. 

A partir deste momento de contato com os locais foi que eu tive contato com o que é de fato o choque cultural. Foram tempos difíceis de ajuste. Surpreendentemente eu encontrei dentro de mim uma vontade grande de fazer dar certo a nossa vida ali. Algo dentro de mim dizia que a experiência valeria muito. 

Também quero viajar neste balão

No meio disso tudo, eu já fazia parte do IEA, uma associação de expatriados que me deu muito suporte neste processo. Por meio desta associação eu pude me envolver em várias atividades interessantes, além de usar meus talentos e habilidades para divulgar um pouco da cultura gastronômica brasileira por meio de aulas e pequenos eventos em minha casa. Fiz bons amigos por meio deste grupo, o que tornou a vida muito mais agradável e interessante. Uma pena que no fim eu não tenha conseguido furar a bolha expatriada que eu tanto almejava. De todo modo nossa experiência aqui foi melhor do que a de Miami, justamente porque saímos da bolha brasileira. 

Vento no litoral

Pouco mais de um ano depois do ataque, Jurema desenvolveu insuficiência renal. Antes disso ela foi vítima de intoxicação por mal-armazenamento de ração no supermercado. Depois de descoberta, a doença evoluiu muito rápido. Em parte por conta da inabilidade dos veterinários e a falta de estrutura das clínicas da cidade. Tivemos de optar pelo sacrifício da nossa maior companheira. Foi a decisão mais difícil que tive de tomar na vida. A maior ironia eu ter perdido o meu cachorrinho num lugar onde eu fiz tão bons amigos. Dizer adeus foi muito doloroso, mas ao mesmo tempo eu tinha muita certeza de que era o melhor para ela, porque estava sofrendo demais. Tivemos de enterrá-la no jardim e assim ficamos com uma casa enorme e vazia, sem a presença dela. Eu nunca havia imaginado que o Sri Lanka me tiraria a Jurema desse jeito. A partir daí, o copo meio-cheio passou a ser meio-vazio e fomos nos desconectando do país aos poucos. 

Uma casa muito engraçada

Fizemos muitas viagens buscando um novo posto na Ásia, porque depois de tudo o que aconteceu nós queríamos fechar o ciclo. Visitamos Vietnã, Índia, demos uma passadinha nas Ilhas Seychelles pra descansar no fim do ano e fomos passar o ano-novo Chinês na China. Experimentamos vários mundos novos em pouco tempo, tentando nos desvencilhar das saudades do nosso cachorrinho e de todo o sofrimento que ela enfrentou vindo morar no Sri Lanka com a gente. Funcionava durante os passeios, mas a saudade gritava ainda maior quando chegávamos de volta em casa e ela não estava lá. Era o momento de maior solidão: a casa vazia e triste. Depois de tudo e de nossa decisão de só termos um novo cachorrinho depois que nos mudássemos de país, eis que surge em nossas vidas, Onofre.

Quando um certo alguém

Um gatinho de aproximadamente 4 meses, com as mesmas cores da Jurema, só que com a prevalência do branco sobre o caramelo, apareceu na porta de casa e já ia entrando quando o jardineiro o impediu. Bruno decidiu que iria a uma reunião e que depois o levaria para um lugar seguro e eu resolvi que enquanto isso era melhor mantê-lo no jardim. Decidi que era melhor levá-lo ao veterinário para castrá-lo e dar as vacinas antes de entregá-lo para adoção, visto que em Colombo eram muito comuns gatos de rua. Um problema crônico de super-população, muito embora os srilanqueses tenham por hábito alimentar aos animais. Uma coisa levou a outra, tínhamos a viagem pra China, não deu tempo de castrar e decidimos deixar o gatinho no jardim durante nossa viagem. Voltamos e ele continuava por lá. Manhoso e muito fofinho, ele foi nos conquistando aos poucos e quando percebemos já não queriámos que ele nos deixasse.

Isso junto ao fato das pessoas começarem a dizer de que ele era a reencarnação da Jurema: porque tinha o mesmo tempo de vida que ela tem de morte. Porque ele sempre agiu como se a casa fosse dele e ronronou pra gente desde o primeiro contato. E porque eu tive um sonho 3 dias antes de sua chegada onde a Jurema se transformava num gato. Tantas coincidências foram usadas por nós como motivos para amar este bichano sortudo, que veio parar na casa de pessoas que diziam não gostar de gatos. E assim, 4 meses depois, a casa estava de novo cheia de vida. Saíram os latidos grossos e cheios de graves ranhetas da Juju. Entraram os miadinhos agudos, longos e muito manhosos de Nonô. <3 Parece que o país quis se redimir conosco de alguma forma nos dando este gatinho de presente. 

Encontros e despedidas

Nossa vida no Sri Lanka foi rica, inclusive nas dores. E por termos vivido tudo muito intensamente chegou uma hora que concluímos: chegou a hora de partir. Na verdade, começamos a nos despedir desde que Jurema nos deixou. A sensação foi que íamos desapegando cada dia um pouquinho mais. Tudo o que era pitoresco foi começando a incomodar. Os modos, as formas de solucionar problemas, o modo de agor e pensar das pessoas... tudo isso foi aos poucos nos dando a certeza de que já tínhamos vivido tudo o que havia pra ser vivido neste país. 

No fim, as coisas aconteceram muito rápido e tivemos a chance de percorrer alguns dos países que figuravam como possibilidade de novo destino. Pudemos decidir com clareza, pesar o que seria importante, onde aprenderíamos mais, onde teríamos mais possibilidades de crescimento. E batemos o martelo na China. Tudo aconteceu de uma maneira tão suave que realmente parece que tinha tudo pra ser. Até o fato de não termos mais um cachorro, e sim um gato. Com o frio que vamos enfrentar no inverno de Pequim, um gatinho é muito mais cômodo de lidar que um cãozinho que demanda passeios. 

E, assim como acontece sempre, após a decisão da partida vem a dor das saudades de tudo o que começamos a deixar pra trás. O olhar pela janela do carro passa a perceber coisas que o costume nos tinha roubado. A sensação de frescor e novidade invadindo mais uma vez. A vontade de dar mais uma passeadinha e ir naquele lugar que você sempre quis, mas nunca arrumou jeito. Fora os amigos, a rotina, toda a vida organizada que a gente tinha, por mais que não estivesse perfeita. Tudo mudou com a marcação da data de partida. Fomos felizes aqui. E ainda recebemos novos amigos de presente no fizinho da nossa jornada. No final, ficou a sensação de gratidão.